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(Ana PCacido)

/In.i Plácido, trabalho do ilustre artista fíntonio Carneiro, expressamente feito para este /i

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do Olarlo Intimo

dt Aru Placlao

2.° MILHAR

DOCHÀ Madtins

DA ACADEMIA DAS SCIANCIAS DE LISBOA

À PA I XÃO DE CAMILO

(ANA PLÁCIDO)

EDIÇftO DO nOCTOR

COMPOSTO E IMPRESSO

NAS OFICINAS GRAFICftS DO <A B Ci

65, RUA DO LSCRIM, 65 LISBOA

PQ

FEB / i968 ,

AURAS BOMANTICAS

O PORTO DE Uh 75 ANOS POSITIVOS E QUIMÉRICOS O <PHLHEIRO> CONFLITOS DE DU/iS SOCIEDADES /\S TORTURAS DOS BAILES •OS hviTELECTUAIS E SEUS <AN]OS> UxVlA VISÃO DE CA- MILO CASTELO BRANCO— A FAMÍLIA PLÁCIDO QUEM ERA MANUEL PINHEIRO ALVES <BRASILEIROS» E POETAS

O Porto, por 1849, vivia grave, pesada e comedidatncnte do trafego, da lide do negocio golpeada por um gume de sentimentalismo ultra romântico da gente apontada, detraz dos balcões, em desconfianças largas. Os mercantes carregavam dinheiro, os péchosos de idealismo acastelavam suas quimeras.

Abrira- se um abismo de castas; no seu fundo bulcuavam irritadamente despei- tos e convulsivos ódios,

Estava-se no rescaldo da Maria da Fonte; muitos dos ponderados comerciantes tinham acaudilhado, então, o José Passos em explosões furiosas contra as decimas dos Cabrais, mas agcra, apesar do conde de Tomar ter sido realçado ao poder, deixa vam aos retóricos o cuidado dos ataques no Nacional, no Periódico, no Ecco, na Pátria, embrulhados em virulências e tratejavam dos armazéns para a alfandega, re- boliçavam na praça até que, ás noites, n'um repouso bem ganho, os pés á vontade nos chinelos, gosavam das destemperadas polemicas sobre o governo de Lisboa. De- liravam conforme es suas simpatias mas acabavam encolhendo os hombros, vinda a reflexão, num desdém pelas <balas de papel*. Mercê da politica entravam as ga- setas em seus recatados lares e com âs diatribes do agrado dos pais iam as poesias doloridas que faziam scismar as filhas.

Nesse tempo as mulheres portuenses assim comunicavam com o ideal c Stt alguma adiantava mais a curiosidade no mapa das fantasias temerosamente es- condia os livros, fontes de seus devaneios, receosa dos berros paternos, das falácias da sua roda burguesa, do descrédito. Podiam sonhar cm suas alcovas, voejar pelas regiões dos amores celestiaes tocados sempre do frémito de beijos e amortecidos pelo

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hálito de campas, mas sua viagem de espirito acabava numa derrocada ante a critica severa dos progenitores, calculistas, metódicos, que capitulavam de ctrastes» os va- tes e de <indrominas> as suas composições.

Descreviam-nos como arpoadorcs de dotes, tipos <sem eira nem beira nem ramo de figueira», mãos a abanar, consumidores de copos de agua e palitos do café Gui- chard, as guedelhas mcrovingias onduladas artificialmente pelo De Leopoldo, da rua de Santo Hntonio, caurinadores do fíugusto de Moraes que lhes fiava paletots, cor- tes de coletes e casacas de ancas.

Uns valdevinos! Uns bragantes! dscidia o Porto do trafico excitado por suas atitudes, seus chapéus altos de abas direitas, seus olhares fatais, suas capas bandadas de veludo e o polimento das suas botas á Frederica.

Pertenciam a esta plêiade de tresnoitados despresadores do negocio os mais au- daciosos rapazes da cidade do Douro; mesmo alguns rebentos da chatina mergulha- vam nos bródios dos janotas, dos poetâs c folhetiiiiâías frequentadores das platéas onde dominavam por suas prosapias, modos, remoques e renome. Herdeiros de gran- des aristocracias emparceiravam cm seus ágapes nocturnos, maniiestavam-se a seu lado e os burgueses atavam no desacreditado molho os morgados, os fidalgos, bacharéis e adventícios rimadcres. Sob as casacas azuis ou verdes garrafa dos estúrdios parecia denotar-se um apressado e eterno arfar de corações ; debaixo aos peitilhos dos seus detractores dilatavam- se estômagos. Hcêrca duns dizia- se que armazenavam vento ; dos- outros cataiogavam-nos por padrões como ás rezes, ftvaliavam-nos pelo peso dos contos de reis como, em arrobas, a carne de mercado.

Os senhores da praça do Porto eram hom">geneos era feitios c opiniões : caute- losos, reservados ; em politica, cartistas ; jmas bera no âmago, gananciosos, amealha- dores até de viciados patacos, embora guardassem nos Bancos os gordos c fartos sacos de moedas de oiro.

Quasi todos tinham grangcado suas abastanças no Brazil; voltavam afreiraados de importância e de mais lucros, queriam figurar e^muito silabosos, sotaqueando os dizeres, chancelavam seus contractos, fllguns expeliam-sc em eloquências fáceis, patuscas, experimentadas nos grémios dos caixeircs do Rio e usavam-nas nas reuniões, á vontade, como nas botas de elástico, pompeando na cidade onde o dinheiro era a única aferição social.

Misturavam-se-lhes negociantes de educação diversa, mas logo a subordinavam aos dos grossos capitais.

Na ftssemblcia Portuense ou na Sociedade Filarmónica eles mórdomisavara como na Misericórdia e irmandades ; trepavam era honrarias, titulavam-se ; havia os que abriam salões, á lei da verdadeira nobreza, e convidavam os jornalistas para os bailes, anciosos de serem «botados nas gasetas>, enaltecidos diariamente numa fcme ugolinica de evidencia e reclamo percursora da moderna exibição das crónicas mundanas.

O barão de Alpendurada, que pertencera aos batalhões nacionais e babujava a conversação de necedades, apesar de se saber troçado, convocava os da imprensa c aparecia em toda a parte fazendo seus comentários picarescos.

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o Sousa Basto, anos depois, visconde da Trindade, era o festeiro mór, bom pagador de foguetes e bombinhas; o de Massarelos, mais comedido no seu baro- nato, também dava leis na sociedade dos mercantes apesar de ter sido apanhado em dolo ao estado, em contrabando. (*)

Os poetas que escreviam na Lyra da Mocidade, um jornalzito acanhado e mal impresso, transbordante de ideal e necropolismo, apareciam nas reuniões com seus ares sonhadores, pálidos, olheirentcs mais pelas indigestões das ceias do que por seus males de alma e iam fazer-se amar ou desesperar-se ciumentos dos pares per- mitidos aos seus Ídolos nas quadrilhas e nas mazurkas. R valsa constituía ainda uma incursão no «reparado>, no quasi licencioso.

Dançavam-na os ingleses no seu fechado club da Feitoria onde se ofereciam festas esplendorosas ás quaes se respondia na Assembleia com numerosa assistência mas sem alegria estonteante. Pelos bailes burgueses reinava o constrangimento, mesmo quando se aglomeravam trezentas pessoas. Na Filarmónica havia uma compostura de boa companhia; mal se falava pelo receio de parecer mal ou fraco entendedor dos trechos musicais. Disputavam a gloria, sob aqueles tectos, a condessa do Casal, D. Luísa, filha do general governador e D. Clementina Ribas; garganteava-se o dueto da Maria Padilha, a cavatina da Macbeth; soluçavam, aiantes ao som das suspirosas rcbecas, as fantasias sobre motivos do Roberto do Diabo. Amadores de renome os bons curiosos como então se lhes chamava o Joaquim Mendonça, o Do- mingos Gonçalves, o Leoni, o Manuel Carqueja, os Freitas, os Costas, pianistas exíoiios, concorriam para o bom êxito dos trechos da Luccia, na scena dos túmulos, tanto do agrado da época, da ária dos Puritanos, do Ernani, tudo entrechos romanescos em que se palpitava á custa da música, pelos queridos tão mal vistos no mundo comercial.

Aigamis damas cantavam e geravam frémitos, arrastavam as almas; era muito falado um terceto em que D. Adelaide de Almeida Mendonça e dois dos en-

{*) Nos últimos dias da semana passada foram apreendidas 10 pipas de vinho do sr, barão 4e Massaralot, s 20 de ontra casa desta cidade, em consequência de denúncia qne honve. Este vinho era despichid) 00*00 g^ropi^a, qne pa^a 100 rs- por pipa, e assim logrsva-se o Estado em 15$000 reis, psio m^nos, em cada pipa. Dizem-nos que entre as 30 pipas apenas apareceram 2 de ([eropíga: eram aquelts d: qu; se deviam tirar amostras para a alfandega.

Os negociantes ingleses estavam desesperados contra esta tranquibernia, e queriam mandar nma depatação ao sr. director da alf <niega para protestar contra o embarque deste vinbo, mas não foi pre« ciso, porque o sr, director mandou recolher a depósito o vinho apreendido,

Fa ando sinceramente, não censuramos o proceder destes senhores, que quizeram privar a fazeoda da im>nsa diferença que entre o direito da geropiga e o do vinho ; porque vtmos que o sistema que hoje reiaa é <quem pilhou, pilhou, quem não pilhou, pilhasse !>

Se esia gente que nos governa n.ão fora uma súcia de imbecis, o direito de exportação de £eropiga devia ser em vez de um tostão, 20$000 reis em pipa, porque também assim se evitaria o descrédito dos noisoi vinhos na Inglatirra acreditem, se quizerem, que é i <má aplicação> da geropí^», que se deve a desgraça do comércio de vinhos.

(Nadonal, 9 outubro de 1848)

tusiastas pdos ccrccrtcs arrcbatevem. Eriravím cm córcs es iiirâs Ouftiro, D. Izíbtl de Oliveira, D. Guilhcimina Piírcnlcl, a Nelo c ouiras que nicis cgitevcm com suas vezes os corações dos epéixoradcs. (*)

Tudo isto se fazia quási cera scvcridcdc. crera vivazes as ícMes dcs estran- geiros, as do akirão Mcscr que te ceva violino c lôra o ciccrcrc do Frircipe de Lichoncwischy no Porto, as dos britan'ccs, sobre tudo as do baião de Forrester, um opulento proprietário industrioso c c,ue deva rcuriõcs orce duzenles CtVcJhcires se divertiam bebendo do n-eis piccicso virho de seu tréfcgo ii^tcllgerte.

Hs senhoras Cirnes, do Peço das Petas, guai devem a sceicdade méis sclceta; fidalgas dançavam sobre es sues pcmpcsas aleatifes: es Rezende, es Verzcas, a a Chardonney, n-atqueses, condessas e es rices Werzeileres.

O grupo dcs românticos, dos vates, com suas caíaeas do Mcr;óo, seíem dos abadessados c [do teatro de S. João para os tíiveitimentís da seoiededt^. Errevam pensativos e cncostavam-se mclancclicamente às hcmbreiras. O folhetinista da meda Evaristo Basto arrastava uma cadeia de elegantes intelectuais: o Lousada, que me- ditava seus romances, os irmãos Gouveia Osório, um dos quais seria arcebispo c o outro professor da Escola Medica, Hlexandrc Jcsé da Silva Braga Junicr com Mar- celino de Matos, futuros grandes advogados, Azevedo Guimarães, Tcíx^^ira de Macedo, Marques Rodrigues c Jaime flrtur de Oliveira Pimentel, então versejando em más rimas a Ela «á mulher anjo>, que enchia as imaginações de todos os do grupo como se os andares da cidade fossem sucirsaes do parais o, os pianos que elas tocavem fontes de harmonias divinas c o frufrar dos vestidos, talhados pela Rndrillac, pela Widerkur e por mademoiselle Elisa, antiga caixeira da Bline, equivalesse ao ruilar de asas seráficas de doce rumor.

As meninas educadas pela Pcdestá, do Colégio Francês, algumas, de mais tratos britânicos, no de miss Casey, ao Rosdrio, viam naqueles rapazes de aspectos tristonhos c de más reputações os proibidos esposos e punham-se a amá-los cm segredo pre- ierindo-os aos comanditarios ponderados, ás boas iirmjas, e ás rezões sociees acon- selhadas pelos chefes de família para prosperidade dcs lares.

Nem toda a neve dos sorvetes que se começava a usar, como supi-assumo do chiquismo nos bailes, arrefecia os ardores das peixões tccades de laivos íunerecs oa de goscs celestiaes: a lousa do cemitério, que Soares de Passos torne ria indispen- sável aos grandes amores ou á felicidade toda etérea do Riem, cm que se alimen- tassem de brisas e violetas os unidos nesses ideaes conjugios.

Foi depois dum deites bailes que Camilo Castelo Branco, pela primeira vez, descreveu em prosa uma figura femenil entrevista de forma tão perturbante que a guardaria no coração.

(*) Além destes maito celebrados havia no Porto mais alguns de valia e notoriedade como eram os apontados pelo próprio Camilo: «o Félix Borges de Medeiros, Joaquim Mendonça, Easilio Alberto, Gon» çalves, Mirandas, doutor Domingos Pinto de Faria, Francisco Eduardo, o pequeno Ai\tii Napole;o e sen pai, as sr." Ribas e Calaínhos. Cita-os como ctncoirentcs ao salão dos Rabaçaes, na <Coiia> fag; 118, 2.aei

Chegara de Vila Real onde escapara de ser morto, por sua oposição aos Cabraes, experimentara a pena nas pugnas politicas e, tendo- se instalado no Porto, em fioaes de 48, no hotel Francês, na rua da Fabrica, despertara curiosidade por sua iigura c dera logo que falar de si pela assidua c variada colaboração no Nacional, o órgão ousado onde o egresso Hlves Martins, futuro bispo de Vizeu, com um núcleo atre- vido, {*) descadeirava os governantes. No rcz do chão da hospedaria onde Camilo SC acolhera funcionava a gaseta c ele escusava de sair da cama para vêr as provas das suas zsrgunchadas ou das poesias acerbas, queixosas nas quaes ora amaldiçoava ora santificava as amadas. Dizia-sc um réprobo, um precito.

Contaria vinte e quatro anos no março seguinte ; era magríssimo, alto, de olhos muito vivos, dentes magníficos sob o bigode negro e farto ; do rosto crivado por sinaes fundos da varíola, pálido, bilioso; fugira-lhe a beleza mas, sob a luz das suas pupilas, espalhava a simpatia, a capteção initinctiva, auxiliado por sua voz macia, ora terna ora irónica.

Usiva muito compridos es cabelos pretos, a sua mão era pequena, de dtdos finos e o causava, por sua mingua, o desespero dos outros elegantes. R anemia devorava-o ; chupara-lhe as carnes e mais diáfano de tez, enfraquecido, envergado de escuro, encoleirado na gravata de três voltas, aparecia nas salas como uma sombra ungida pela fatalidade tanto em moda nas novelas francesas lidas pelas meninas às escondidas.

Bcqueiava-se de seu sarcasmo e de sua sentimentalidade. Mal o compreendiam tão depressa transtornado de penas como zombeteiro :

Triste flor I não fui culpado

Foi teu fado Vir morrer tão cedo ^aqui (**)

Chorava assim por um camor perfeito e logo se desmanchava ao dirigir-se a certa dona, na mais destemperada trcça :

Alta noite acordei e mal desperto

Com o olho inda fechado e outro aberto

Comecei a chorar e fiz tal molho

De pranto que manapa dum olho (***)

Casquinava suas risadas satânicas no Oh i Dor t enchla-se de fúrias e desvairava na prosa a poucos dias de intervalo :

cQue me importa a mim o futuro 7 Cadáver que se move pelo impulso de es-

{*) Parada Leitão, Damaiio, Almeida e Brito, Lobo Gavião, No){neira Soares, Evatisto Basto.

(**) O meu amor perfeito, no Nacional de 6 de junho de 18 l8.

(***) A minha eorrupondencla, no Nacional de 18 de dezembro de 1848.

cassa inteligência, o meu espirito gastei-o, consumi o no rolar duma paixão e essa mão de ferro que me comprimiu até ás fezes o órgão da vitalidade, crava-me agora os dedos na medula dos ossos.:»- (*)

Blasfemava ; almejava infernos em histerismos que o sacudiam c aos leitores. O seu nervosismo comunicava-se ; o seu temperamento impunha-sc. Pela originalidade de seus artigos cheios de fogo ou de arsénico, pela fama das perseguições dos ca- ceteiros cabralincs, pelos singulares contrastes de sua fisionomia interessou mal surgiu, admirou os que se lhe achegaram, perturbou corações c, vivendo semp-e entre d-.is ou três amores, volúvel, irriquieto, inconstante, no seu epurismo de janota, devia tornar-se para os burguezes, o sirnbolo da fauna ultra romântica que ou endeusava as mulheres ou as descompunha em platónicas maldições nos folhsítins das gazetas. O ódio a estes fantasistas refervia nas almas praticae, nas dos velhos preten- ciosos c nas dos mancebinhos acanhados.

Uns detestavam-nos por suas noitadas, turbulências e trajos, outros por suas ju- ventudes queridas das mulheres, os terceiros pelos sucessos amorosos tanto mais retumbantes quanto as suas reputações se laivavam de peores nodas.

Na Assembleia Portuense, à Trindade, e que os de 34 tinhêra fundado em grandes largueses civilisadoras a darem-se ares de quem vivera na emigração mds em clubs que de fomes, existia uma sala reservada a que chamavam u Palheiro e na qual, com uma pontualidade de mendigos em portaria monástica, entravam os apreciadores da escandaleira. O nome do apobento, onde as linguas se desembara- çavam com as imaginações, dizia- se provir de seu atapetado de esteira ; filia va-sc também, a origem em se desfibrarem ali as reputações mais srlidas em peihas e maravalhas. Camilo decidiria haver engano ; segundo ele, a designação nascera do habitual ambiente dos frequentadores de^se canto de fama portuense, temido e onde se entrava com receios. Os ricos vendedores de beetão e os «brasiieircs> biliosos e sardónicos íâziam o coro das risadinhas irritantes e com cautelas aventavam suas historias, atribuindo-as sempre ao anónimo : csim cies tinham ouvido dizsr, não o juravam, mas o mal é fâlar-se h ; conselheiros, empregados do estado, roídos de desesperos e de males secretos, miguelistas aderidos ou aventur?iros partidistas for- neciam o cibo aos gulosos que, de olhos acesos e bôjas babadas, escutavam as inzonices daqueles gancheadores de protervias. Contavam-se obrigõtoriamente anedotas pífias, lúbricas, baixinho c diziam- se versos de rasteiro bocagianismo aplicados ás se- nhoras e aos homens mal apontava em seus lares a menor suspeição. Por vezes punha se a correr uma infâmia entre gargalhadas sandias, arrotos des comidas picantes c volúpias pelintras. Era uma maçonaria apatiíada, um Conselho dos Dez onde umas linguas farpadas boatavam ao acaso e um bando se encarregava de propagar a maldade. Camilo era detestado nessa caverna de gente abonada, nessa sede de maledi- cência injectada em palestras brincalhonas c esguichada, depois, a todos os cantos como verdades absolutas.

(*) o Futuro, no Nacional de 26 de dezembro de 1848,

Os rapazes vingavara-no e aos outros difamados desdenhando do Palheiro, tro- çando seus frequentadores e agentes nas mesas do Guichard seu baluarte, seu reducto onde consumiam espirito e cerveja de garrafa.

Depois dos desesperos cu dos gosos em que as suas almas comungavam, cm- quanto as requestadas dormiam, eles vagueavam namorando a lua, versejando, deva- neando sob as janelas fechadas. Atiravam aos espaços cm garganteios as árias que a Clara Belloni de Rezzi cantava no S. João ou es do reportório da Debadeille sua rival conforme acaudatavam uma ou outra. Os esturdiotas, vates, a juventude janota, tendia para a originalidade, um sopro de aladas ilusões enchia as suas cabeças e sendo na vida generosa, sentimental e ousada até a morte lhe sorriria se lhe trou- xesse à imaginação o poético lúgubre dos fantasmas deslisando entre jazidas como nos finais de acto das operas comoventes.

Foi turbado por idênticos pensamentos que Jorge Artur de Oliveira Pimentel, de boa familia provinciana mas de fracas posses, deliberou morrer.

Era poeta c escrevente de advogado ; apaixonara-se por uma das irmãs Outei- ros, Sofia, tão celebrada^nas reuniões por sua voz, ouvira-a, na noite gélida de janeiro, soltar os seus trinados, numa festa de sua casa, entrevira-Ihe o perfil e guardando nos ouvidos aquele cântico c na retina a visão da amada, perdera-se no escuro da ponte pênsil, dera-se ares de noctívago impenitente ao falar com os guardas, embu- çado no capote que daí a pouco tirava, dobrava c colocava na beira da passagem com a carteira onde se lia o seu nome.

Apertava contra o coração um gorro que a adorada mulher bordara e lhe ofe- recera e preparara-sc para esse salto na treva que levava ao infinito. Ele bem lhe dissera, na Lyra da Mocidade, em péssima forma mas revestindo soberbo anccio :

Uma mulher, um anjo

Gosar não vem da solidão comnosco

Unindo o rosto, peito a peito

Em deleitoso abraço ?

De que valem, sem ela, o prado, as flores

De que valem impérios e riquezas

O mundo de que vale ?

E como -cousa alguma sem o seu hálito de amor valia o mundo ele atirou-se às ondas frias e sumiu-se levando-a no suspiro que as vegas lhe sufocaram ao abra- çá-lo.

O cadáver não aparecia e os inimigos dos românticos espalhavam nos estabele- cimentos, e bichanavam raivosos no Palheiro, tratar-se dum suicídio fingido. se asseverava ter sido visto o lamentado amoroso recostado num carro em Oliveira de Azeméis.

Cinco dias depois, as aguas devolviam o corpo inchado, na babugem do refluxo, atiravam-no contra o paredão da Ribeira a calar com a sua presença sinistra as pala-

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vras malévolas dos que sentiam a gente do seu temperamento incapaz da nobreza da morte por amor. CamiUo acornpanhanhara-o ao cemitério e ao voltar quasi orjtva, cm sua prosa, ambicioso da paixão das mulheres peias quais se morria.

«£u por mim peço a Deus que me não mostre a mulher dos meus sonhos, mas se um dia a vir hei- de dobrar o joelho sobre as urzes desta minha vida de espi- nhos e exclamar:

<Mulher adoro te l

<Não sou séptico, creio muito em Deus e n'Ela i

<Em mim e nos homens é que não creio nada.^ (•)

Confessava-se assim. Efnbora em sua existência houvesse o travor dum ardente romance amcroso ele sentia bsm não str aquslà Patrícia Emiiia, que lhe dera uma filha, a mulher capaz de o algemar. Nem ela nem as outras cujas graças cantava cm seus versos como um rouxinol na treva aguardando o luar para redobrar seu gorgeio.

Devia ir descendo em seu espirito á banalidade a provinciana, confiada c deli- rante, que, num arranco/fenviara à pequenita nascida de seus amores, à roda dos engeitados de Vila Real saindo desse berço dos desditosos para os embaladores bra- ços duma ama robusta do lugar de Iscariz, nas brenhas transmontanas.

Tratava-sc duma sensação gosada, do final dum capitulo da sua existência de sonhador do inédito, sendo capaz de tudo, sem mentir, para o gosar e, sem mentir ainda, a tudo pronto para o repelir por inútil depois de devassado.

i\ mãe da sua filha não falava mais à fantasia do homem que andava querido c admirado, para o qual as mulheres, mesmo as da sociedade superior, tinham olhares de curiosidade, ftinda não era um grande escritor mas a sua espontaneidade, a fácil produção de sua pena, as loucuras que se contavam como bem próprias de seu fei- tio, atraiam e impressionavam.

R anemia que lhe sorvia os glóbulos rubros, lhe esbatia a amarclidão nas faces dava-lhe o ar triste que bem cabia às imprecações rimadas cm seus versos. Poeti- sava exteriormente tudo cm que tocava c como alçado a um mundo fictício povoado por outros seres até romantisava o nome da creada, da Gertrudes, à qual de Getru- ria tratava, que não lhe era íacil envolver cm lirismos os rosados bifes de presunto de Lamego e as troixas de recheio ofertadas como tónicos pela serva àquela enfer- midade pertinaz, com o dulccroso melão não menos próprio de cânticos apesar de seu neme evocador do mel dos versos helénicos.

Cuidava muito do seu trajo, tinha conferencias demoradas com os alfaiates, pre- feria o negro que lhe realçava a descorada fronte c como de anhelos de amor vivia não deixava de frequentar todas as festas onde quasi sempre encontrava um espinho de roseira a arranhar- lhe a sentimentalidade.

Escrevia no Nacional um folhetim intitulado Trigonia Romântica, o Scepfíco,. alcunhado ainda de romance filosófico c no qual misturava visões de nccropo-

(*) Nacional, 10 de Janeiro de 1849.

les, «virgem esposa das campas» cora agiotas torturadores, antros, e «donzelas suas irmãs no soírer.>

E' possivel que escrevesse dia a dia, ao sabor das impressões, ao acaso das necessidades do momento como lhe sucedia frequentemente. H desigualdade do «romance filosófico faz arreigar este pensamento c a descripção duma das figuras letaes, encos- tada a uma sepultura, e que ele dizia não poder esquecer e amar, é tão extr&nha coroo a transplantôda para ums sela sob uma impressão sentidíssima contrastante com as dos seus arroubos fantasiosos das paginas anteriores.

Na segunda semana de fevereiro de 1849 a 10 publicara-se o trecho da atrabiliária novela na qual ninguém reparava por se meter entre fantasmagorias as realidades dum baile.

São tão idênticas as s.u?s narrativas desta época e as traçadas depois, ao evocar o seu primeiro encontro com a mulher do seu maior amor, que fazem medi- tar, se na verdade, não teria encontrado então a «dcs seus sonhos>, a que pedia a Deus não lhe mostrasse:

^Uma vi lá, por exemplo, que suposto joven e bela emquanto não fez mais do que acompanhar machinalmenie o parceiro, seguindo o estúpido passo da contra- dança não passou de excitar em mim um sorriso que importava o mesmo que eu dissesse : bem te creou Deus para iludir, mas desde que passando a dançar a polka volteou três vezes ou quatro aérea com.o uma sylphide, garbosa como uma andaluza ora requebrando languidamente o pescoço, ora ondulando os vestidos, ora deixando interver o chistoso sapato de setim preto que mais parecia semear flores e caden- ciar harmonias do que descrever meros compassos de musica começou a represen- tar-se-me na vida não como uma beleza irmã de tantas que ha na terra senão como uma dessas criações angélicas aonde o moral é mais do que o physico, os olhos mais do que os lábios, o coração mais do que tudo, uma dessas mulheres de excepção que, semelhante à phenix do deserto todos acreditam que existem mas ainda ninguém disse ter encontrado, um desses seres fantásticos de que todo o homem se captiva aos 20 anos, de que aos 25 duvida e aos 30 descrê.

Eis o que se me figurou a graciosa bailadeira da polka, mulher, anjo ou demónio que tanta poesia tinha nos passos como amargura no peito.*

D2slumbrara-o como um dom do Senhor; garreara-lhe fortemente o coração:

«Se por ahi a virdes dizei-lhe que seja anjo: eu não espero mais vêl-a! Â que encontrardes nos bailes, parecida às belezas de Rubens, olhos pretos, cabelos escuros, riso todo inocência, faces pálidas, rosto oval, colo de jaspe, talhe de haste flexivel que o mais leve sopro derruba e podendo apenas contar de quinze a dezasseis primaveras, não rccieis enganar-vos: elay.

Acentuou largamente no romance não esta evocação digna do pintor flamengo das carnações florescentes e exhuberentcs, mas o que a rodeava:

<.Mal acabou de dançar foi sentar-se e então reparei noutra dama que lhe ficava ao lado e que apezar de muito formosa ainda não me tinha atraido a atenção. Era uma beleza de tipo diverso, rosto menos oval, figura menos volátil, colo se é

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possível, mais alvo, sorrir ainda mais inocente, loura como uma escosseza das que Walter Scott tomou para heroinas dos seus romances, olhos de azul celeste e para contraste singular com a cor destes e do cabelo uma tão profunda melancolia e uma tão desbotada palidez a espraiar -se lhe por todo o rosto que me obrigou a perguntar a alguém que a conhecia se aquele era o seu estado ordinário. Feliz deia se o fosse, respondeu o individuo a quem me dirigi: aquela menina padece e dizem-me que traz o gérmen da morte comsigo. Dantes era rodada como uma alemã e hoje é aquilo que ali está. Duvido que possa durar nem seis meses . . . pois asse- guro-lhe que é penal Tem tanta bondade no coraçào como formosura no rosto. É uma assucena que vai desfolhar>.

E isto me passava na ideia., quando uma senhora que poderia ter quarenta e cinco anos, grossa e refeita, como é de supor que fossem os filhos e filhas do imperador Vitelio, veiu cortar o fio das minhas meditações convidando a dama dos cabelos louros a que fosse cantar ao piano. Cantar e morrer, refleti eu I (*)

(*) Isto era publicado em folhetim i.'o Nacional át. 10 a 15 de fevereiro de 1849, Doze anos mais tarda Camilo evocaya scenas idênticas datando-as exactamente dbqueb época.

cGiravam as walsas, sentia nas faces o hálito das mulh»res ofegantes de c?nsaço, os vnstidos em rodopio agitavam o ar tépido, roçavam-me o braço hombros nus, seios alV''s, duros come o alabastro e não sei se mais animados pela vida do coração que o mármore das estatuas. Se eram Galatheis não o sabia en; Pygmaliões no ardor do olhar, pareciam-me tcdos os que as levavam ciugidas no s Itar vertiginoso da dança. E elas deixavam-se apertar e enlanguesciam, ígcitando as feições a modo que pareciam ccvergo- nhadas da lubricidade deles. O espectáculo devia ser deleitoso para todo o homem que estivesse em paz comsigo e com os outros. Para mim era triste. Ali foi que eu conheci o que é doer a solidão moral.

<Cessaram as danças. Um homem deu-me o braço e disse-me:

cVenha vêr as ties mulheres mais Indas desta terra.

A que primeiro vi mal me recordo. Se a procurar hoje, depois de doze anos; para acordar as mne< niscencias de então, não a encontro que morreu.

<Da segunda nunca poderei esquecer os olbos, A luz que eles tinham, como o fogo das vest»es, nunca se apaga: a terra da s^tpultura abafa o recipiente da alma que champjava nelfs, mas a flama vive sempre na memoria do coração que a contemplou um momento. Morreu também essa.

<A terceira eras tu

«Lá vão doze anos. *

<Entra comigo, outra vez, cessa sala, em que te deixei a alma, para ma restituíres nestes dias de prova.

«Olha: estamos rodeados de cinzas que tiveram um rome. Estas cinzas eram então as duas vencidas rivaes da tua formosura. Chora ao desta cruz Colhe esta flor, que tem rai;es no do seio de jaspe da que era tua irmã>.

Camilo Fragmento dum livro a pg. 207 da Noticia de sua vida e obras, na 2," edição, por Vieira de Cas'ro.

A assegurar que este fragmento foi escrito em 1861, doze anos depois de ter visto aquela mulher, está en ter sido traçado na cadeia. Logo referindo-se á irmãzita dela morfa em 1859, diz: <aquele pe- queno anjo, que ha doze anf s balbuciava ap:nas, vimo-lo faz amanhã dois anos, despegar o vôo e escoa- der-se no seio de Deus >

Mais tarde o escritor, debuxaria traços idênticos, de semelhanças aproximadíssi- mas. E fazia-o sempre ao recordar a primeira hora em que vira aquela mulher tão querida com tão apaixonado ardor e tão forte comcção que jamais a olvideu-ia e entre- teceria em volta dela a saudade.

Ou foi nesta ocasião ou noutra, bem sua par, que ele inicialmente se fascinou ao contemplar Hna Augusta Plácido, cujo retrato tanto se parece com o da persona- gem desenhada no folhetim do Nacional.

Tinha olhos pretos e cabelos escuros, devia sorrir ingenuamente, apareciam páli- das as suas faces brancas, era oval o seu rosto e apesar de forte e solida seria fle- xível o seu talhe como era de jaspe seu belo colo.

Aprnas se diferençava do retrato tracejado tãj entusiasticamente na idade que lhe atribuía. Contava mais de quinze a desasseis primaveras. Não ia alem dos desas- sete anos (*), porem, aquda creãnça que perturbava a fina sensibilidadí do romântico.

R que amaria entranhadamente, a que não desligaria mais de sua sobressaltada vida parecia-se muito com esta ao cotcjarem-cas. Hi paginas em que quasi as irma- nou. Voltaria para a visão o seu psito experimentado nos sobressaltos de amores menos tocados do sabor novelesco da dificuldade, do inacessível, embora a sua fantasia sempre emprestasse alguma cousa de sublime às amadas. É certo que com a mesma > inconstante as despojava. Todavia a Ana Augusta que ele entrcvira também assim num baile, tinha um destino traçado por um casamento que os seus lhe impunham.

Noigumas m ites dessas festas burguesas onde ela ia, cetos intrusos tinham pene- trado na reunião e provocado reparos talvez nascidos de ciúme. Hjuvera falatório; naturalmente no Palheiro enredara-se, reclamara-se e logo a direcção, em nota severa, bem anunciada, (*•) dedaaa que: ctendo cm consideração algumas observaçõzs que lhe fizeram sobre terem concorrido aos últimos bailes pessoas que a isso não tinham direit 1 e atendendo a que para remediar este abuso do modo mais suave convém fíxàr por uma vez e tornar publico o verdadeiro sentido que deve dar-se ao art.° 3 dos esta- tutos>, os dirigentes, numa larga d«?dução despontuada, sem vírgulas mas cheia de freima, rodeavam de cautelas a entrada nas salas da Assembléa. Assentavam guar- dar as jovens dos olhos dos namorados dos que sentiam sobre eles todo o aborre- cimento dos pais e dos pretendentes de peso. E elas se encantavam por seus ares e frases, as atrela a fama de suas proesas

Erguidmse as ponteagudas It^nças dum férreo regulamento como baionetas defen- sivas das virgens ante a cubica dos vates deixando-as no contacto dos maledicentes da e&teirada sala onde se alojavam os formidáveis inimigos desse singular bando. (***)

(*) Ara Plácido em Ferereiro de 1849 coetara 17 anos pois faria 18 a 7 de Sftembro.

(**) ^0 Nacional df 13 de fevereiro de 1849 ao tfmpo em que saía o folhrtim O Seeptlco.

(***) pod am coacorrer sócios oa assíoantes, sras filhos maiores de 14 anos, desde que oio fos- sem ÍDd<!readeot;s; ningaem entraria vm bi'hete de conrite fiicalisado e ass'nado, sendo rerificade por ama comissão a qual também tinha a teu car£o re:onh^er es nuscarados nos bailes da qaadra car- BaTales;:a.

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fls iaroilias, que tanto velavam pelos corações de suas filhas, querendo-as bem casadas, podiam contar com o zelo dos mordomos do grémio e concorrerei;» sem perigo aos bailes nos quais encontrariam pessoas de credito assente, gente de situação, homens conhecidos na praça como aquele que se indicava para marido da menina cuja beleza encantara o detestado jornalista.

É certo que ele não poude esconder a impressão recebida na lesta onde a creança de desassete anos dominava, sendo mais apetecida ao saberem-na em transes de noivar.

Os Plácidos iam mudar-se da Praça Nova para a rua do Almada desde que se falara do casamento daquela linda mocidade de obediência.

i\na e a irmã encantavam es românticos que as achavam, como todos os portuenses, as mais formosas meninas frequentadoras da Hssembléa, do passeio burguez de S. Lazaro, dos camarotes de S. João, saltitando da lama do burgo para o estribo do carrcção ou ajoelhando nas naves. Passavam a escutar os seus pianos, os trechos ingénuos e sentimentais ensinados pela Anta de Araújo, a do colégio da rua de Cedoftita. E se os poetas lhes queriam enternecidamente, os homens do nego- cio, sem lh'o saberem exprimir, em termos de as enfeitiçar, cubicavam também, Antónia e Ana, gémeas na beleza.

Olhavam o seu prédio como uma capela de amor da qual sairiam as divinda- des e, a caminho da praça, cies não esqueciam seus rostos nem as canções bucóli- cas entoadas de suas bocas sobre a rua.

A primeira das irmãs casaria com o filho do celebre Ferreirinha, da Régua, António Barnardo Ferreira Júnior e que andava a namora-la fazendo trotar na cal- çada lindes montadas, atrevido per seu dinheiro e sua reputação embora a dar- se vesos de original. Era um janota, escapo, pelo sangue, à eh ncela romântica. Por esse Douro alem as quintas, os vinhedos, as propriedades, as adegas, os bens da casa paterna arredondavam um excelente condado. Asseverava-se que seus senhores mediam as libras aos alqueires, às razas.

Um decreto de D. João VI, de 1824. dera foros de fidalgo ao grande viticultor consorte duma senhora rigida de principies, ciosa de sua hierarquia e que se osten- sivamente não impedira o casamento do filho com aquela encantadora rapariga, de nome Antónia, como ela, andaria a querela-lo à conta das partilhas, a litigia-io após a morte do comerciante opulento e cavaleiro nobilitado que pompeara no seu tempo.

Assim como o Farrobo, (*) em grande sumptuosidade de milionário artista, edi- ficara o seu teatrínho nas Larangeiras, onde até a louça que se quebrava era de Sévres, se a rubrica o ordenava, o portuense de fartos teres, num gesto menos dis- pendioso e mais recatado, reunia os amadores num palco, do seu palácio, onde se representavam peças serias, como o Luiz Aí, de Casimiro Delavigne, a qual tinha por protogonista o futuro editor José Gomes Monteiro, fazendo o dono da casa o papel de duque de Nemours.

(*) Vêr artlÉo de Henrique Kendall— O Tripeiro, de outubro de 1908.

i\s recitas continuaram e quando o capitalista fechou os olhos e partiu forçada- mente, levado pelos comparsas da derradeira comedia, correu-sc o pano na residên- cia de Vilar.

R união com o filho de tão opulenta familia, em cousa alguma modificara a vida do lar onde ele escolhera noiva.

flntonio José Plácido Braga agenciava por seu trafego o sustento e grsnde decên- cia dos seus. Usava de manhas de minhoto ambicioso, lidava dia e noite mas sentia à sua volta doze filhos. R esposa, Ana Hugusta Vieira, uma forte c esbelta mulher de Ramalde, creara-os com cuidados mas a fatalidade tocara alguns deles da tisica por um fenómeno extranho na ligação de dois sangues fortes, de duas compleições robustas.

Hquele homem vivia numa tarefa sem fira e aos domingos, depois da sua missa em Santo Ildefonso, socegava até à noite em que acompanhava as raparigas à Hssemblea, à Filarmónica ou ao S. João despendendo para seu gáudio as quatro moedas do camarote.

A volta da Rna, em busca dos seus sorrisos, andavam os rapazes das melho- res casas, porém, o pae dispozcra do seu futuro, a encaminhara para um destinado esposo julgando vêr no seu amparo a felicidade da creatura romântica de ^ujos anhelos, anciãs e arroubos mal suspeitava.

Tinha bem escondido no seu seio um pezar de afectos porque ela mesma se enganava em seu sentir embora vislumbrasse alguma cousa de fascinador vinda não dessa ternura primeira mas doutra mais intensa que a dominaria.

Hoa Plácido, antes do baile, onde ficara meditativa, pensava num companheiro de infância, num rapaz que brinccira à sua beira, lhe aparecia nas suas mais recuadas recordações. Iludia-se ainda depois da festa onde fora, como sempre, admirada e na qual outro a vira num deslumbramento.

Imaginava ser o verdadeiro amor esse contacto que, nascido com as paixões pelas bonecas, parece capaz de encher a vida e não passa de ephemero enleio, de vão en- tretecer de ilusões, de enganoso sentimento que um nadinha, quasi sempre, aniquila.

O maior amor é o que brota, como as fúnebres as algas lutuosas, banhado no pranto das vagas inconstantes; é o que mais lagrimas custa e na tenra edade não se chora por muito amar.

É certo que ha excepções porém nas almas fantasiosas é pouco ter brincado na meninice para se referver em paixão.

Ela, tomada de atracção profunda psla leitura, intimamente uma romântica, era dos espíritos que albergam sentimentalismos, aninham insatisfações, palpitam e anceiam por seus pares para os devaneios duma novela a viver; queria ser a personagem dum romance sobre o qual soluçassem os leitores; escrevia, às escondi- das, os seus versos, devorava, ocultamente, as literárias composições obtidas a custo e assim, presa pelas fortes e floridas cadeias dum incessante devaneio, vivia o seu misterioso capitulo de amor dum recorte todo de comoção e de arte.

Naturalmente fiuctuava no seu animo a amizade pelo que em creança julgara

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adorar; seria capaz de o coasolar cm suas dores e imprudentemente lho escrever ou dizer, porem não lhe daria amor desde que seus olhos tinham sido magnetizados pela luz dum exh-anho fulgor para sempre a lembrar-lhc. Vel-o-ia mesmo de pálpebras cerradas. Sem duvida foi neste estado de alma que começou a amar ao sentir a contemplação ardente de Cam.ilo. (*)

R donzela perturbada num instante guardou aquele admirador num permanente pensamento.

O homem, fraco atraía a exuberância da sua carne decerto pelo espirito que lucilava de seu corpo quasi transparente.

Que lhe valia, porem, pensar? Sabia, como todos os meios portuenses, da de- cisão tomada pelo pae acerca do seu casamento.

Pedira-a um dos capitalistas de mais nomeada da praça. Manuel Pinheiro Hlvcs pesaria uns cera contos de reis e a sua historia era a de muitos que abalavam para o Brazil aos doze anos para regressarem al«ra dos quarenta ou cincoenta atochados de dinheiro não tendo do amor outra impressão íóra do arrepio de duas epidermes, ou antes, do contacto animal dos sexos. O motivo da sua existência concentra-se na matraqueação ousada da chatinagem. Quando estes homens se dedicam a um afecto diferente são ou sublimes ou miseráveis na sua cxteriorisação. Hquele adorava a linda menina que o chefe da familia lhe ia entregar cônscio de a tornar feliz de lhe dar um rijo amparo nos braços do minhoto arteiro saído da aldeia para a aventura rude.

Tinha quarenta e trcs anos e era do logarcjo de Souto, visinho de S. Miguel de Seidc, um povoado triste, à beira de Famalicão onde se chegava por atalhos e quin- teiros, saltando barrocos, à sombra das uveiras; os seus labutavam na chã e ele, depois de talhar a estrada do ganho , comprar a casa de portão na aldeia, acomodara-a, tomara servos e deixando os parentes a lidar partira para o Porto, abrira escritório de corretagem de barcos, instalara-se num andar espaçoso no 378 da rua do Almada donde espreitava a noiva que ia completar o seu sonho de <:brasileiro> opulento.

Puzera-se a auxiliar o futuro sogro c talvez fosse esta ajuda o motivo primaz daquela união. Os cônjuges diferiam tanto em edades que não se poderia levar á conta de reciproca simpatia o acto que se ia rcalisar. O pae pleiteava a favor desse quarcntão, (**) de aspecto limpo, de rosto escanhoado, o cabelo grisalho e sedoso

(*) < Acordada acs dezassete anos fixei a aurora do meu caminho com o seio aberto a todos os rigores- da vida, a todas as espansões amorosas que se me abriam na imaginação nociva.

«Em uma sala de baile, no meio do esplendor de Inzis e do aroma rescendente de mil vasos entu* mecidos de flores, uns olkos disseram-me ao coração: <tít('>, um sorriso fez-me estremecer todas as fibras, que estavam intactas.

<Mas esta visão primeira do amanhecer, aquele olhar colhido em seio de virgem jamais ponde ser esquecido >.

Ana Plácido Lia Coada por Ferros, 2," ed., pg, 94, (**) Ver Doe. A.

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dMm corte à moda, entrajado em cores próprias da sua edade e que marcava bem as contradanças nas salas, no seu entusiasmo, com alguma cousa de rejuvenesci- mento no aspecto ao aproximar-se dela cuja eddde distava da sua vinte e quatro anos. Ia deitar ao mar mais uma barca, a Califórnia, e possuiria a mais bela mulher do Porto.

Podiam acusá-lo de traficante que não desviaria os passos do lodo onde medrava o ouro. No Jornal do Podo um desfalcado declarara :

€Em beneficio da humanidade e para que mais ninguém seja enganado como eu fui pelo sr. Manuel Pinheiro Âhes, como caixa da barca «Norma», naufragada na barra desta cidade no dia 21 de janeiro do corrente ano quando ia a sair para o Rio de Janeiro, rogo-lhe o favor de publicar no seu acreditado jornal que este senhor como caixa e o sr. João Adrião da Rocha como capitão e 'dono do dito navio apenas devolveram aos infelizes passageiros metade das suas passagens que tinham pago, quando é constante que tinham seguro o casco, aparelhos, fretes e mantimentos e que neste caso e segundo as leis a tal respeito deveriam ter resti- tuído todo o importe das ditas passsagens ou ao menos dois terços das mesmas.

<Desta sorte foram os passageiros extorquidos da parte do que tinham pago e que lhes não foi devolvido na conformidade da lei nem da equidade e é assim que se enriquece em pouco tempo e sem o menor risco. José Bernardo Pereira Cardoso.^

Rico era ele em demasia e tanto que conduzia um pae de cérebro comercial a dar-lhe a filha embora lhe iiEpuzusse o casamento <como ura sacrifício.» (*) Possivel- mente o bastidor dos negócios puderia explicar esta frase pronunciada, sem duvida, nalgum momento de maior anciedade de vencer relutancias ou de salvar capitães pelo progenitor da formosa Ana Plaeido cujo futuro marido andava acoimado de desonesto em seu mister e «de enriquecer em ppuco tempo e sem o menor risco. >

O arguto deixara que o acusante partisse para o Brazil e só, então, desteme- roso da replica, se